sexta-feira, 20 de maio de 2011

Meditando com Lynch

Documentário revê a passagem do diretor pelo Brasil para lançar seu livro


O diretor David Lynch, como sabem os cinéfilos, é um dos artistas mais intrigantes (e, por isso, um dos poucos estimulantes) do atual panorama cinematográfico mundial. Por esse motivo é tão sólida sua fama junto a um pequeno círculo como notável é seu distanciamento do grande público. Em 2008, no entanto, Lynch veio ao Brasil lançar um livro, Em Águas Profundas, sobre meditação transcendental, e foi tratado como pop star. O documentário Transcendendo Lynch, de Marcos Andrade, registra o périplo do diretor, mostrando-o em entrevistas coletivas, palestras e noites de autógrafo.
Divulgação
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Iluminado. Diretor é avesso a decodificar a sua obra e prefere que cada um a entenda como quiser
Sempre é interessante ver e (sobretudo) ouvir Lynch falando de si mesmo, de sua obra e, inclusive, de suas descobertas esotéricas e da adesão a essa forma de iluminação interior. Diz que pratica a meditação desde 1973, duas vezes ao dia, religiosamente, chova ou faça sol, esteja em casa ou em viagem. Recomenda a todos, inclusive a quem o filma ou entrevista.
Essa apologia da meditação transcendental relembra um pouco o clima dos anos 60 e 70, quando o orientalismo esteve em voga, em especial entre os jovens. Casava-se muito bem com a contracultura, com sua busca pelo entendimento através de caminhos alheios à razão, e com sua conotação um tanto hostil aos valores ocidentais, então questionados. Todo esse pano de fundo histórico poderia ter servido muito bem ao documentário, mas dele está ausente.
Assim como estão quase ausentes os liames entre a prática adotada por Lynch e sua insólita, porém muito intensa, filmografia. Há alguns traços indicativos de como a atenção a elementos não dirigidos pela consciência podem beneficiar o processo criativo, mas não se insiste muito nesse ponto. Por exemplo, é bastante curiosa a maneira como Lynch descreve a criação de Veludo Azul, um dos seus filmes mais famosos. Primeiro, a canção Blue Velvet, que lhe pareceu tola, mas não lhe saía da cabeça. Depois, as imagens de uns lábios femininos muito vermelhos, e de uma orelha que jazia sobre a relva. A partir desses elementos, ele constrói todo o resto da obra.
No fundo, é um trabalho com o inconsciente, que o fluxo de pensamentos da meditação beneficia e pode tornar mais ágil e natural. Bergman também o utilizava. Em seus escritos, o diretor sueco dizia trabalhar muito a partir de imagens - exatamente como Lynch. Em Gritos e Sussurros, para ficar num caso famoso, viu um grupo de mulheres vestidas de branco contra um fundo vermelho. E, aos poucos, foi construindo o resto. As mulheres eram irmãs que tomavam conta de uma delas, moribunda.
É pena que o documentário não tome esse rumo mais investigativo sobre as relações entre a prática da meditação e essa obra muito criativa. O espectador mais curioso é obrigado a inferir essas ligações a partir de indicações fornecidas, a contragosto, pelo próprio Lynch. A contragosto porque, como sabem os que já tentaram entrevistar o diretor, é notória sua aversão às explicações racionais sobre sua obra.
Não deixa de ser curiosa a maneira como as pessoas buscam chaves simbólicas ou outras formas de interpretação para decodificar o que lhes parece estranho. Quando lhe perguntam sobre o acerto dessas interpretações, Lynch responde invariavelmente por um "não". Negativas muito bem-humoradas, aliás.
E quando querem saber por que recusa explicações, Lynch sai-se com uma resposta muito boa. "Porque as pessoas, no fundo, entendem muito mais do que supõem e porque aceito qualquer interpretações sobre meus filmes, qualquer uma mesmo." Nesse sentido, sua obra é uma máquina de gerar interpretações e, quanto mais enigmática for, mais eficiente será.

Obra
Águas Profundas - Criatividade e Meditação (Gryphus) traz uma série de capítulos curtos em que David Lynch revela as influências da prática da meditação transcendental em sua vida e obra.
TRANSCENDENDO LYNCH
Direção: Marcos Andrade. Gênero: Documentário (Brasil/2009, 83 min.). Censura: Livre.

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